A discussão sobre pedofilia é tabu em boa parte do mundo, mas especialistas lutam para que o diagnóstico e o tratamento do pedófilo sejam mais amplamente divulgados. A razão é simples: o tratamento pode evitar que pedófilos se tornem abusadores e criminosos e, logo, que haja menos vítimas.
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“As pessoas pensam que quando falamos que transtorno pedofílico é uma doença, estamos protegendo o indivíduo pedófilo em detrimento da vítima. É proteger a vítima e averiguar se aquele que molestou a criança de fato é ou não portador de pedofilia. A grande maioria dos molestadores de criança não é portadora deste problema”, diz Danilo Baltieri, médico-psiquiatra da Faculdade de Medicina do ABC e resposável pelo Ambulatório ABCSex, que trata pedófilos.
Baltieri também explica que ao redor do mundo, não são muitos os especialistas na área. Doenças crônicas como depressão, diabetes e hipertensão ganham mais atenção da medicina tamanho o tabu.
“Existe uma dificuldade do profissional da saúde em enfrentar este tema, que não é fácil. Existe um preconceito público enorme, o que é totalmente compreensível, e o assunto é complexo mesmo. É difícil”, explica.
“Os pacientes com o chamado transtorno pedofílico em geral necessitam de abordagens interdisciplinares. Não só do médico. Ele precisa do psicólogo, do assistente social, é necessário o apoio da família”, completa Baltieri.
O que é pedofilia?
A pedofilia é um distúrbio parafílico, ou seja, é um comportamento sexual que não segue a normalidade, como a necrofilia (o desejo de ter relações sexuais com cadáveres) ou a zoofilia (o desejo sexual por animais). Na pedofilia, a pessoa tem interesse intenso e persistente por crianças.
Segundo a OMS, os distúrbios parafílicos são caracterizados por padrões persistentes e intensos de excitação sexual atípica, manifestados por pensamentos sexuais, fantasias, impulsos ou comportamentos, cujo foco envolve outros cuja idade ou status os torna pouco dispostos ou incapazes de consentir e nos quais a pessoa agiu ou pelo qual ele ou ela é marcadamente angustiado.
Este tipo de comportamento não é considerado uma orientação sexual como a heterossexualidade, homossexualidade e a bissexualidade.
por que tratar pedófilos?
Não existe cura para as parafilias. Logo, a pedofilia também não tem cura. O que isso significa? Que os pedófilos conviverão com o problema por toda a vida e que por isso é necessário tratamento. Não há como mudar o interesse destas pessoas, mas com a terapia é possível ajudá-los a controlar e não agir a partir de seus impulsos.
O tratamento pode ajudar que não haja novas vítimas e para que aqueles que já cometeram algum crime não voltem a fazê-lo.
Tratar pedófilos é um desafio da medicina.
“Nenhum de nós é contra a pena de prisão. Nós somos a favor. O que nós somos contra é a falta de tratamento dentro e fora das penitenciárias”, diz Baltieri.
Para Antônio Serafim, piscólogo que coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica (NUFOR ) do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, outro problema é generalização do termo.
“Como há confusão sobre o termo pedofilia, as pessoas tendem a generalizar. Qualquer pessoa que pratica abuso é chamado de pedófilo e, logo, criminoso. Esta situação impede que reais pedófilos procurem ajuda”.
Abusador X pedófilo
Nem todo abusador de criança é pedófilo. Abusadores de crianças podem ser definidos por seus atos, pedófilos são definidos por seus desejos. Um pedófilo que não procura ou recebe ajuda pode vir a se tornar um abusador e, logo, criminoso.
Baltieri explica que de 20 a 30% dos abusadores de crianças tem o transtorno pedofílico. A maioria são pessoas que se aproveitam de uma situação de poder ou de oportunidade para cometer o abuso.
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A classificação generalista faz com que a Justiça acabe por colocar todos no mesmo grupo, em casos de pedófilos que cometeram crimes. Porém, sem assistência médica, as chances de um pedófilo abusador cometer um crime novamente aumentam.
“De nada vai adiantar prender o portador de transtorno pedofílico junto com outros molestadores, se não for ofertado o tratamento adequado. Um dos denominadores comuns entre os pedófilos e os molestadores de criança é ter a ideia de que a criança gosta, de que a criança é um ser sexual. A gente chama isso de distorção cognitiva”, explica Baltieri.
E complementa: “Em uma penitenciária aonde a maioria tem este tipo de pensamento, deixá-los compartilhar, é ele aprender que isso é normal, que é a sua visão de mundo. Uma intervenção dentro e fora das penitenciárias é crucial”.
Como é feito o tratamento
No Ambulatório da Faculdade de Medicina do ABC, 50 pedófilos recebem tratamento. Eles são atendidos de graça por médicos e residentes da faculdade. E o tratamento é feito de forma voluntária.
“A procura é enorme, mas temos limite de agenda. Não tratamos ninguém involuntariamente ou sob medida de segurança, não temos nenhum tipo de parceria com o setor judiciário”, diz Baltieri.
O tratamento envolve:
· terapia em grupo
· diário comportamental
· presença da família
· remédios quando necessário
O “coração” do tratamento são as sessões de terapia em grupo, diz Baltieri.
“Se um paciente fala algo, é muito mais fácil um outro portador da doença confrontar a mentira, a negação, do que o terapeuta que não é pedófilo. Este tipo de postura é o coração de todo tratamento ao redor do mundo”, explica.
Já no NUFOR, Serafim recebe pedófilos que podem chegar por determinação judicial: “O tratamento consiste inicialmente passar por uma avaliação psicológica e psiquiátrica para verificar sintomas. A partir daí pode ser usado medicação e psicoterapia”.
A medicação usada varia entre antidepressivos e controladores de humor a terapia hormonal, usada em casos mais raros em que o impulso sexual é muito forte.
Mudança de foco
Baltieri explica que o principal trabalho realizado é o que eles chamam de “redirecionamento masturbatório”. A técnica visa mudar o “foco” da atração do pedófilo.
Com ajuda dos psicólogos e psiquiatras, a pessoa aponta um adulto pela qual se sinta atraído: “Vamos tentar fazer com que esta pessoa foque neste outro tipo de indivíduo. Ele vai iniciar sua masturbação pensando nesta pessoa adulta, naturalmente sabemos que as imagens infantis vão ser intrusivas -elas vão aparecer durante o ato masturbatório. Quando aparecer, ele interrompe a masturbação e retorna novamente neste processo (de mudar o foco)”.
Outra prática realizada com os pacientes do ABCSex é o uso do diário comportamental, em que além de relatar o dia a dia, os pacientes falam sobre suas fantasias.
“Ele vai escrevendo um diário, que a gente chama de diário masturbatório, onde ele vai contando quando se masturbou, se deu vontade, se as imagens apareceram ou não, se ele teve vontade de olhar para crianças, se atração em relação às crianças tem reduzido ou não, se ele tem feito uso de desenibidores como álcool e outras drogas…”
Quais as dificuldades no tratamento?
A maioria dos pedófilos são homens. Existem mulheres que tem o transtorno, mas são casos mais raros. Mesmo assim, a pedofilia é altamente heterogênea. Ou seja: pode ser que a pessoa tenha uma forma mais branda do distúrbio e apenas fantasie com crianças ou pode ser que ela tenha um impulso maior e chegue a agir contra uma criança.
“De qualquer forma, desde o mais leve até o mais complexo, o tratamento sempre é muito difícil. O que talvez seja um dos motivos para não termos mais especialistas na área”, diz Baltieri.
Baltieri explica que por conta da natureza do transtorno, os pacientes têm enorme dificuldade em se abrir: “Elas vão aos poucos revelando quem são. A vida sexual é muito íntima. Com a vida sexual dita normal já temos dificuldade para falar para qualquer pessoa. Imagina alguém que tem uma atividade tão complicada quanto se excitar com criança”.
“O diagnóstico também não é fácil, não é uma coisa que se faz em uma, às vezes nem em duas, consultas. Às vezes se demora a fazer o diagnóstico pela dificuldade do paciente em revelar as suas fantasias”, explica.
Maioria é casada
Segundo Baltieri, a maioria dos portadores de pedofilia que procuram tratamento no ABCSex é casada, alguns com filhos. Por isso, um dos objetivos do tratamento é mudar o foco de atração.
“Não é nem de longe um objetivo a perda da libido, mesmo porque isso não funciona em nenhum país. A libido não é apenas hormonal, envolve o aspecto cerebral, neuromoral, cultural”, diz.
“O objetivo é reestruturar a vida deste indivíduo. Inclusive a vida sexual com a sua mulher ou para que desenvolvam novos rituais de namoro com pessoas da mesma idade. É reaprender este processo”, explica o psiquiatra.
Na maioria dos casos atendidos no ambulatório do ABC Sex, as mulheres acabam por participar do tratamento do companheiro, mesmo quando decidem não manter mais relações sexuais com o indivíduo.
“Eu nunca vi uma separação nestes quase 16 anos de ambulatório. As esposas tentam entender que é um problema, elas percebem o sofrimento dos pacientes que nos procuram e tentam ajudar. É lógico que no início existem as dúvidas, a raiva, o nojo. Se as próprias esposas entendem, acompanham, por que os outros não?”, explica.
No futuro, o ambulatório quer oferecer terapia de grupo também para as mulheres de pedófilos.
Qual a causa da pedofilia?
Não existem muitos estudos sobre as possíveis causas da pedofilia. Segundo Baltieri, o que a medicina sabe sobre o transtorno pedofílico é que é uma doença do neuro desenvolvimento.
“Existem exames em neuro-imagens que mostram alterações pré-frontais do cérebro e na região da amígdala. A região pré-frontal é a região do cérebro responsável pelo controle impulsivo e a amígdala é a responsável pela regulação das emoções. Isso significa o quê? Que existem alterações, não de estrutura, mas da funcionalidade”, explica.
“Ou seja, o cérebro de um portador do transtorno pedofílico funcionaria diferentemente diante de estímulos do que o nosso cérebro, de quem não é portador”- Danilo Baltieri, psiquiatra especializado no tratamento de pedófilos.
Estudos mostram que a genética pode contribuir para a incidência de pedofilia. O estudo mais famoso sobre o tema foi realizado em 1984 e mostrou que filhos de pedófilos tem maior chance de serem pedófilos também.
Segundo Baltieri, existe também a evidência do abuso sexual na infância, mas não como um fator de causalidade. O abuso sexual não é a causa, mas pode contribuir se tiver alguma vulnerabilidade genética ou dificuldade relacional na pessoa.
“Fiz um estudo com cerca de 208 agressores sexuais presos em uma penitenciária do estado de São Paulo. Dentre os 111 que eram molestadores de criança, se tinham sofrido abuso sexual na infância, tinham seis vezes mais chances de agredir crianças do que mulheres adultas”, diz.
Como é feito no mundo
A dificuldade em oferecer tratamento para pessoas com transtorno pedofílico é mundial. Na Alemanha, um projeto que começou em Berlim tem dado certo, especialmente no trabalho de prevenção de abusos.
O projeto Dunkfeld funciona desde 2011 e se transformou em uma rede nacional conhecida pelo lema “não ataque”. Os pedófilos entram para o programa de forma anônima e pela lei de confidencialidade entre pacientes e médicos não podem ser denunciados para a polícia.
Nos EUA é diferente. Em casos de crimes revelados pelo paciente ou se o médico detectar um alto potencial para ação criminosa, ele deve reportar para as autoridades.
No tratamento alemão, a terapia de grupo também é parte central. Nas sessões semanais, o grupo compartilha sentimentos e aprende, dentre outras coisas, a lidar com situações que possam ser estressantes para quem sofre do transtorno e a tentar controlá-lo: festa infantis, reuniões familiares com a presença de crianças…
O programa alemão tem o apoio de familiares de vítimas. A família de April Jones, um menina britânica de cinco anos que foi assassinada em 2012, pediu que ajudem aos pedófilos que procuram por ajuda.
“Se alguém disser ao médico: ‘Eu tenho esses sentimentos, posso ter ajuda?’, seria melhor tentar ajudá-los antes que arruínem a família de outra pessoa”, disse Coral Jones ao jornal inglês “The Guardian”.