O sincretismo faz parte de nossa cultura que lida, desde sua origem, com o complexo de vira-latas
A expressão “complexo de vira-lata”, criada em 1958 pelo jornalista brasileiro Nelson Rodrigues para se referir aos brasileiros, significa “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo”. Contudo, à medida que o tempo foi passando, outras conotações foram sendo atribuídas a essa expressão — entre elas, a ideia de que o brasileiro não apenas é formado por uma mistura de povos, culturas e identidades, mas também que, em quase tudo, somos uma mistureba incoerente de preferências, gostos e crenças.
Não é incomum conhecermos pessoas que não permanecem por muito tempo em um único fluxo (salvo engano, em times de futebol). Quase tudo com que nos identificamos hoje, possivelmente já nos foi estranho em algum momento — e daqui a alguns anos, talvez não queiramos mais ser associados ao que hoje chamamos de nosso “gosto pessoal”. Basta ver playlists em plataformas de música: vão de funk ao rock pauleira, passando por aquelas músicas antigas da banda Calcinha Preta.
Nos perfis de redes sociais, vemos pessoas colocarem na mesma bio: “cristão”, “aquariano”, um símbolo xintoísta e postagens delas pulando sete ondas no réveillon em Salvador. O sincretismo é quase uma obrigação para o povo brasileiro, que consegue, ao mesmo tempo, confessar uma fé sem abrir mão de seguir ensinamentos de outras vertentes religiosas. Temos inclusive quem se diga ateu, mas que nutre um medo genuíno de espíritos e fantasmas.
Essa capacidade parece ser adquirida no berço familiar, tornando impossível dissociar do brasileiro esse traço cultural difícil de explicar, mas que é vivido com leveza e naturalidade.
A própria formação do que viria a se tornar o povo brasileiro partiu de diversas misturas e miscigenações, majoritariamente entre povos originários e seus descendentes, africanos trazidos à força no doloroso período da escravidão e os colonizadores europeus — todos carregando suas crenças, rituais e espiritualidades. O sincretismo surge então não apenas como uma convivência de diferentes expressões religiosas, mas como uma necessidade cultural e histórica de sobrevivência e identidade em meio a choques, opressões e adaptações.
Alguns dizem que isso acontece porque queremos agradar a todos — mas acredito que seja algo mais profundo. Mesmo em lugares remotos do Brasil, onde não há grande preocupação com aparência ou aceitação, encontramos famílias que, ao mesmo tempo em que professam uma fé específica, praticam uma espiritualidade que vai além daquela matriz formal.
Vivemos em um país onde fé, folclore e crendices populares se misturam com as superstições e simpatias herdadas dos antepassados. E provavelmente você percebeu que, até aqui, ainda não fiz juízo de valor sobre essa característica tão brasileira — e nem pretendo fazê-lo. Deixo aos estimados leitores essa reflexão.
Meu abraço a todos aqueles que vivem sua fé de maneira legítima e coerente. E meu carinho aos que ainda estão se encontrando em sua espiritualidade.
Wesley da Silva Santos é professor, escritor e pesquisador da educação, atua na área desde 2013, com artigos publicados em periódicos nacionais e publicações de livros vendidos em toda a américa latina.
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