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No sobrado de dois quartos, alugado a R$ 900 por mês numa rua estreita e de paralelepípedos do bairro simples de Jardim Olinda, em Cabo Frio, na Região dos Lagos, Glaidson Acácio dos Santos começou a projetar sua pirâmide em 2014. Então maître de um resort com 84 suítes na vizinha Búzios, onde recebia R$ 800 para trabalhar das 15h às 23h20, ele foi orientado pela mulher, a venezuelana Mirelis Yoseline Dias Zerpa, a iniciar a carreira como investidor e consultor de moedas virtuais, as chamadas criptomoedas. No tempo livre, com uma pasta de plástico embaixo do braço, ia no seu carro popular em busca de clientes — uma das primeiras foi justamente a proprietária do imóvel onde morava, que lhe confiou as economias e recebia mensalmente, em sua conta corrente, 10% da rentabilidade do valor investido.
De acordo com as investigações das polícias Civil e Federal, desde então o negócio do casal passou a atrair milhares de outros brasileiros, sobretudo da cidade natal de Glaidson. O esquema criminoso de pirâmide financeira deu ao ex-garçom o apelido de “Faraó dos Bitcoins” e movimentou R$ 38 bilhões nos últimos seis anos. No rastro dele, pelo menos 30 outras empresas do ramo surgiram em Cabo Frio, que passou a ser conhecida como “Novo Egito”.
Com a prisão do ex-garçom, em agosto, muitas delas quebraram, e, pelo menos, dez são alvos de inquéritos abertos a partir de mais de 200 registros de vítimas de crime contra a economia popular e estelionato.
— Orientamos as pessoas a fazerem petições com o mínimo de material comprobatório de que foram lesadas, como contratos ou, quando não houver, prints dos aplicativos das empresas que demonstrem as transações financeiras. Até agora, temos recebido cerca de cinco vítimas por dia no último mês. Iremos compilar separadamente os casos por empresas e tentar localizar os responsáveis, para que prestem seus esclarecimentos na delegacia — explica o delegado Carlos Eduardo Pereira Almeida, titular da 126ª DP (Cabo Frio).
Queda no padrão de vida
Se a ascensão de Glaidson levou a reboque muitos dos seus vizinhos, que contrataram a GAS Consultoria para aplicar valores que estavam na poupança, venderam motos, carros e casas e até contraíram empréstimos em instituições financeiras para investir, os bloqueios judiciais decorrentes da Operação Kryptos também fizeram com que os pagamentos de seus rendimentos fossem suspensos. Os clientes passaram a amargar prejuízos e a conviver com a queda do padrão de vida que adquiriram nos últimos anos.
— O dinheiro parou de circular em Cabo Frio. A cidade, que já teve a economia brutalmente afetada por causa da pandemia, está travada por causa dos atrasos dos repasses e da quebra de outras empresas do setor. Tenho loja de carros há 20 anos, nunca tinha vendido menos de dez, 15 carros por mês. Em outubro, só fechei um negócio: justamente de uma pessoa que não conseguiu continuar pagando as parcelas do financiamento de R$ 1.200 porque parou de receber o pagamento do valor investido na GAS — conta Leandro Rodrigues Diogo, de 41 anos.
O próprio empresário passou a investir na empresa de Glaidson em 2018, aconselhado por um amigo. Desde então, levou outros 11 parentes, entre eles a mulher, os pais e os sogros, e até a faxineira da família, que fez um aporte de R$ 5.000. Nesse período, ele acumulou 11 contratos com a GAS Consultoria e, a partir dos rendimentos, se comprometeu com despesas altas, como os boletos da faculdade de medicina do filho mais velho, que custa quase R$ 10 mil por mês:
— Tudo que eu precisava pagar, eu fazia por meio dos rendimentos com a GAS. Por exemplo, se queria comprar um iPhone de R$ 10 mil, eu aplicava esse valor e, com mil reais que recebia todo mês deles, quitava as prestações da loja. Agora, depois dos bloqueios, vivemos apreensivos e na esperança de que os pagamentos dos clientes, decorrentes de atividades lícitas, sejam liberados. Se isso não acontecer, não sei o que vamos fazer da nossa vida nos próximos meses. Todo o meu dinheiro está com eles. Sempre recebi antes da data estipulada e nunca imaginei que fosse passar por isso.
‘Tive olho grande’
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Amigo de Leandro, um despachante de 24 anos, além de investir mais de R$ 104 mil em quatro contratos com a GAS, aplicou R$ 23 mil na Black Warrior (BW), que encerrou as atividades e também está sendo investigada pela Polícia Civil.
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— Preciso dar o braço a torcer que tive o famoso olho grande. Estava recebendo direitinho os 10% da empresa do Glaidson todo mês, mas veio o consultor da BW, que me prometeu 30%, e eu resolvi arriscar. Depois do carnaval, em fevereiro, coloquei lá todo o dinheiro que tinha na minha poupança. Em uns três meses, recuperei todo o valor. Então, não tive prejuízo algum, mas sei que poderia ter me ferrado — diz.
O rapaz conta que, a partir do meio do ano, a BW passou a enviar comunicados por WhatsApp informando que a rentabilidade cairia pela metade e, logo depois, disse aos clientes que fecharia as portas.
Morador de Jardim Esperança, um técnico em manutenção de 39 anos também teve prejuízos após investir em uma empresa que prometia faturamento acima dos 20%. A Eagle Eyes foi aberta em maio deste ano pelo pastor Jonas Gomes da Silva, que também responde pelo CNPJ da Igreja Apostólica Ministério Renascer em Silva, situada no mesmo bairro. Como clientes, ele angariou basicamente vizinhos e frequentadores do culto que realizava semanalmente.
— Comprei uma casa por R$ 80 mil. Faltando R$ 5 mil para quitar, eu me planejei para fazer um empréstimo e pagar as parcelas restantes, mas deu tudo errado. Em junho, eu não recebi mais nada, fiquei no vermelho, meu nome ficou sujo e eu perdi meu imóvel. Hoje, dou esse dinheiro como perdido. Na época, chegamos a fazer um documento em cartório, mas depois soube que não valia nada. Mas do que tenho mais vergonha é dos amigos e conhecidos que incentivei a entrar no negócio e, hoje, estão na mesma situação que eu. Não investi pela ganância, mas pela confiança que tive na empresa. O bitcoin era uma febre em Cabo Frio, mas acabou me prejudicando — lamenta.
Sem dinheiro e a pé
Servidor público da prefeitura de outra cidade na Região dos Lagos, um homem de 28 anos, que pede para não ter o nome divulgado, diz ter lucrado durante oito meses com o esquema. Com os bloqueios dos repasses da GAS, porém, ele agora tem dificuldades para arcar com os gastos domésticos:
— Meu salário gira em torno de R$ 3 mil. Resolvi investir R$ 30 mil, que tinha guardado ao longo de alguns anos. Como os pagamentos estavam caindo certinho, vendi meu carro, um HB20, por R$ 30 mil, e investi de novo. Durante esse tempo, fiquei contando com ganhos de R$ 9 mil. E pobre, com esse dinheiro todo sobrando, faz o quê? Compras. Então, comprei relógio, roupas, não poupei nem um centavo. Meu cartão de crédito, que sempre veio R$ 2 mil, passou a vir R$ 6 mil. Hoje, estou sem dinheiro e a pé. Mas continuo com esperança de que o Glaidson vai ser solto e vai pagar os atrasados de todo mundo.
Na última semana, Glaidon, que é réu, ao lado de outros 16 comparsas, por crimes contra o sistema financeiro nacional, entre outros delitos, foi indiciado por tentativa de homicídio contra Nilson Alves da Silva, que também atua no ramo de investimentos com criptomoedas. O ex-garçom teria sido o mentor intelectual do atentado a tiros, ocorrido em 20 de março, depois que a vítima disse nas redes sociais que ele seria preso e orientou clientes a retirarem valores investidos na GAS. Em decorrência dos ferimentos, Nilson ficou paraplégico.
Na Operação Kryptos, que resultou na prisão de Glaidson, os agentes da Polícia Federal apreenderam 21 carros de luxo, R$ 13,8 milhões em espécie e 591 bitcoins, o equivalente a cerca de R$ 150 milhões na cotação atual. A Câmara Criminal do Ministério Público Federal, vinculada à Procuradoria-Geral da República, autorizou a liquidação dos criptoativos, e o valor em moeda nacional arrecadado com a venda foi depositado em conta vinculada ao juízo onde tramita o processo.
Na semana passada, Glaidson teve um pedido de habeas corpus negado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no Rio. Procurada pelo GLOBO, a GAS Consultoria não se posicionou.